Ao entrar na sala, Moana ouviu parte da discussão que ali se travava. Chegou no preciso momento em que alguém se dizia alarmado com a frequência com que ouvia relatos de
bullying na escola. Do alto de seus quatro anos de idade, esclareceu a seus interlocutores: "
Na escola não tem bule, não! Criança não toma café...". E saiu, perplexa com o que lhe parecia ser a ignorância do óbvio. Pus-me, então, a pensar o quanto sua indignação procedia. É como se, na ingenuidade de seu comentário, pudesse vislumbrar o óbvio: "conceitos fora de lugar", em vez de trazer inteligibilidade à experiência, podem se transformar num impedimento a sua compreensão. Explico-me.
É sempre por meio dos conceitos que somos capazes de ordenar, compreender e relacionar aspectos de uma realidade que seria caótica em sua infinita variedade. Abstraímos parte das particularidades dos fenômenos para podermos agrupá-los em torno de algo que têm em comum e os enquadramos em categorias, conceitos, teorias. Recorremos a redes teóricas e conceituais quando falamos em
célula, classe social, gravitação, repressão. Um conceito é tanto mais interessante quanto mais nos auxilia a tornar inteligível a experiência, a discriminar entre fenômenos que parecem próximos, mas que guardam particularidades. Assim podemos distinguir o
privado do
público; identificar uma troca de nomes como
ato falho. Essa distinção, esse enquadramento conceitual pode nos auxiliar a compreender a experiência que vivemos ou mesmo decidir por um rumo para nossas ações.
Voltemos ao conceito de
bullying. Navegando entre artigos científicos (das áreas de medicina, psicologia e sociologia da educação), notícias da mídia e definições enciclopédicas, dou-me conta de que ele é utilizado para descrever atos que vão do assédio moral à agressão física, da fofoca nas redes sociais a atos de vandalismo. Agrupados sob o mesmo rótulo conceitual, fenômenos de natureza e gravidade muito diferentes são concebidos como se fossem manifestações particulares e específicas de uma mesma substância comum. Ora ele é identificado como uma patologia: uma
epidemia invisível, segundo um artigo acadêmico da área médica. Ora como uma transgressão moral a ser
eliminada das relações entre crianças de uma escola. Mas em todos os casos aparece como uma palavra mágica, capaz de esclarecer toda a sorte de condutas que causariam humilhação, dor e mal- estar naquele que é objeto do assédio, do acossamento, da agressão. E ao assim fazer, parece ter o dom de nos dispensar de pensar na complexidade e particularidade de cada caso, de refletir sobre o desafio prático que sua singularidade nos propõe. Está tudo explicado: é
bullying!
O
bullying na infância já aparece associado à delinquência na adolescência, à criminalidade na idade adulta! Assim, a brincadeira de mau gosto vira indício da futura marginalidade, o destempero e a incontinência da agressividade, um sinal de "patologia social". E tudo vira desculpa para se isentar do difícil ato de educar, que exige a palavra e o ato correto e preciso em cada caso; que ajuíza se é preciso acolher ou reprimir; que tem de ponderar a gravidade de cada caso a partir da análise do que foi feito, por quem, em que situação. Um conceito que induz a tornar indistinto o que é por natureza diferente pode mesmo se tornar um objeto "fora do lugar", sem sentido. Como um bule entre crianças que não tomam café.
José Sérgio Fonseca de Carvalho Doutor em filosofia da educação pela Feusp
jsfc@editorasegmento.com.br
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