- A fórmula da escola de sucesso: Como é possível fazer a diferença. - Novembro 2009 / Janeiro 2010
O psicólogo cognitivo Howard Gardner abalou as crenças tradicionais sobre a inteligência pensada como capacidade única, herdada e sujeita a medições. "Minha definição de um gênio é uma pessoa que contribui com novos conhecimentos para o mundo", afirmou o pesquisador em sua entevista exclusiva à Pátio, concedida durante sua passagem por Porto Alegre (RS), no dia 17 de agosto, quando fez uma conferência sobre a educação no século XXI durante o evento Fronteiras do Pensamento. Professor de psicologia na Universidade de Harvard e de neurologia na Universidade de Boston, Gardner nasceu em 1943 na cidade de Scranton, Pensilvânia, e provém de uma família descendente de alemães que emigrou para os Estados Unidos, fugindo do regime nazista. Estudou psicologia e neuropsicologia na Universidade de Harvard. Hoje é presidente do comitê gestor do Projeto Zero (Escola Superior de Educação de Harvard) e participa do Goodwork Projetc, destinado a melhorar a qualidade e a autoestima profissional. Gardner é autor de diversos livros que foram publicados em português pela Artmed Editora, tais como Responsabilidade no trabalho (2008), Cinco mentes para o futuro (2007), Mentes que mudam (2005) e Estruturas da mente (1995). Ainda em 2009 está prevista a publicação de seu mais recente livro, Inteligências múltiplas ao redor do mundo, também pela Artmed.
O senhor tem escrito sobre educação e inteligência por mais de 30 anos. Qual é o aspecto desse campo que lhe parece hoje mais relevante?
Três questões me vêm à mente: l) os poderosos efeitos da globalização; 2) o enorme aumento do conhecimento nas ciências biológicas, especialmente nas neurociências e na genética; 3) a velocidade e o poder das novas mídias digitais. Cada uma delas mobilizará inteligências de maneiras novas e exigirá um repensar da educação. Esta última é o tema do meu recente livro Cinco mentes para o futuro. Os países que estão preparados para responder a essas revoluções terão uma enorme vantagem.
A formulação das cinco mentes mostra
sua síntese entre questões de psicologia
e questões de ética?
É uma formulação que apresenta um caráter destrutivo e normativo. Destrutivo no sentido de que essas são as mentes que precisamos ter e normativo no sentido de que essas são as mentes que devemos ter. A mente respeitosa sempre se forma nos primeiros anos, enquanto a mente ética demanda um pensamento abstrato que só é possível na segunda década da vida. Necessitamos de uma mente disciplinada para poder sintetizar, e de disciplina e síntese antes de poder ser criativos. Embora a criatividade seja uma iniciativa própria de pessoas jovens, a disciplina e a síntese devem surgir cedo, pois assim há bastante tempo para ser criativo.
Que relação se estabelece entre as
oito inteligências que o senhor assinalou
em sua célebre teoria das inteligências múltiplas e a formulação das cinco mentes?
As inteligências representam o modo como a mente foi evoluindo e como está organizada. As mentes do futuro - disciplinada, sintetizadora, criativa, respeitosa e ética - são as habilidades e as predisposições que devemos desenvolver, ou seja, para desenvolver as cinco mentes do futuro, precisamos das inteligências específicas, sozinhas ou combinadas entre si. A mente respeitosa, por exemplo, recorre especialmente à inteligência interpessoal, enquanto a mente ética precisa da inteligência lógica.
Por onde começaria qualquer revolução
do sistema escolar na atualidade?
Uma escola deve individualizar a educação tanto quanto possível. Devem ser levadas a sério as diferenças cognitivas entre indivíduos, sendo apresentadas a cada um as melhores maneiras para a aprendizagem. Uma escola deve ensinar conceitos importantes de formas variadas. Ao fazer isso, os professores atingem mais estudantes e mostram como é compreender um conceito, porque quem realmente compreende um conceito pode pensar de muitas formas. Quando as crianças são menores, é mais fácil e apropriado estimular as diversas inteligências. O método é fazer de cada aula uma espécie de museu da criança, com uma variedade de tarefas, jogos e materiais que estimulem cada uma das inteligências. Temos descrito o ambiente educativo em nossos escritos sobre o Projeto Spectrum, os quais estão disponíveis em vários idiomas.
Como as famílias podem ajudar as crianças
e os adolescentes a desenvolver as suas inteligências o melhor possível?
A resposta é simples: dar à pessoa tantas oportunidades quantas for possível, cercá-la com modelos positivos, sempre amá-la e jamais agredi-la ou renunciar a ela.
Os grandes gênios sempre foram incompreendidos na escola?
Minha definição de gênio é uma pessoa que contribui com novos conhecimentos para o mundo. Pode ser o conhecimento científico, como Einstein ou Darwin, artístico, como Picasso, ou político, como Gandhi. Essas pessoas tinham uma inteligência excepcional, a meu ver, mas elas também deviam querer fazer algo original, deixar uma marca que fizesse a diferença para o futuro e, quando elas falhavam, estavam dispostas a tentar novamente. Essas pessoas têm sido muitas vezes infelizes na escola, porque as escolas não podem, por sua natureza, ser orientadas para os indivíduos que são incomuns. Contudo, é evidente que alguns gênios foram bastante felizes na escola.
Que mudanças cognitivas podem ser constatadas nas novas gerações?
Escrevi mais de 50 páginas sobre diversos aspectos que constato como mudanças cognitivas da geração atual, mas muitas coisas devem ser mais bem-pensadas. Por exemplo, é clara a constatação de uma forma de ser multitarefa. Entre os jovens de hoje há uma dificuldade de aprofundamento, mas ainda se deve avaliar melhor quando esse perfil multitarefa é vantajoso e quando não o é. As novas mídias, em princípio, promovem a interação, a criatividade, mas está demonstrado que a criatividade envolve o fator risco, e pesquisas apontam que essa geração não tem muita capacidade de risco. São todas questões que devem ser estudadas.
Como os professores devem levar
em conta essas mudanças?
A maioria dos professores são migrantes digitais e a maioria dos jovens são nativos digitais, aborígenes digitais. Muitas vezes, os alunos têm conhecimentos que os professores não têm − e acho que nós, professores, devemos respeitar os conhecimentos deles. As novas tecnologias devem ser aliadas do ensino.
E como o ensino superior se enriquece com suas teorias?
A teoria das inteligências múltiplas é mais difícil de se aplicar no ensino superior, em que grande parte da ênfase tem recaído tradicionalmente em ler textos e escrever ensaios. Porém, o advento das realidades virtuais, como o Second Life, abre a possibilidade de simular vários ambientes e, portanto, torna possível ativar diversas inteligências. Muitas ciências e artes poderiam ser transmitidas através de várias inteligências em uma vida real; basta colocá-las em prática. Muitas vezes, essas formas de aprendizagem serão utilizadas em primeiro lugar em empresas e no serviço militar antes de fazer seu caminho para escolas formais.
Nesse sentido, o ensino a distância
pode ser uma alternativa importante?
Seria um erro as crianças terem educação a distancia, porque elas precisam de objetos reais para interagir, embora fiquem muito confortáveis no mundo digital. Para os adultos, o ensino a distância é uma ótima maneira de estarem atualizados.
O senhor acredita que a preocupação com a questão ecológica das últimas décadas revela um amadurecimento da inteligência naturalista?
Não acredito que o mundo contemporâneo esteja desenvolvendo a inteligência naturalista. Na realidade, nos últimos 100 anos ou mais, temos destruído nosso mundo. Quanto mais nos voltamos para questões de ecologia e sustentabilidade, mais a inteligência naturalista torna-se importante. Ela nos permite reconhecer diferentes plantas e animais, o mundo da natureza. Aquela parte de nosso cérebro que nas civilizações anteriores era usada para diferenciar a natureza é usada para estabelecer diferenças no mundo do consumo.
Entre as diversas inteligências, quais combinações são as mais importantes
para o sucesso no mercado de trabalho?
Assim como o mercado de trabalho é diversificado, também as inteligências e as combinações de inteligências são diversas. Temos colocado demasiada ênfase na inteligência acadêmica, linguística e lógico-matemática. No futuro, eu vejo maior ênfase na inteligência intrapessoal. Aqueles que têm uma boa compreensão de si mesmos, de seus pontos fortes, do modo como aprendem, de seus objetivos e de como alcançá-los terão uma enorme vantagem sobre os demais. Hoje há mais consciência no mundo em relação à inteligência interpessoal, mas não em relação à intrapessoal.
Quais as potencialidades menos desenvolvidas na escola atual?
Penso que todas aquelas que têm a ver com a arte. Quando jovem, eu era um pianista entusiasta e gostava das artes em geral. Quando comecei a estudar a psicologia do desenvolvimento cognitivo, fiquei impressionado com a ausência de praticamente qualquer menção às artes. Foi muito bom, no início da minha vida profissional, encontrar um lugar para as artes no âmbito da psicologia acadêmica.
Que meios o senhor sugeriria para avaliar o desenvolvimento cognitivo das crianças na sala de aula?
O foco não deve ser a avaliação do desenvolvimento cognitivo, mas sim o domínio das competências-chave, das disciplinas e dos entendimentos. A avaliação dessas habilidades é mais bem-feita por dar aos estudantes novos materiais não familiares e ver se eles podem atribuir sentido a esses materiais em função de suas competências e de seus conhecimentos anteriores. Chamo a isso de performances de entendimento. Só assim você pode dizer se um aluno realmente entende ideias ou simplesmente tem uma boa memória. Além disso, o aluno deve estar aberto a muitas maneiras de demonstrar a compreensão. A ideia de que só existe uma maneira de ensinar e só uma forma de avaliar é um preconceito - e nada mais.
A infraestrutura da escola (classe, quadro, lugar do professor, pátio), na qual estão
bem-delimitados os lugares dos diversos atores e suas funções, responde a um modelo em que prevalece a inteligência lógico-matemática?
A configuração principal é como o professor pensa. Pode levá-lo a um lugar maravilhoso; porém, se a mente for estreita, é muito melhor que em uma sala de aula tradicional haja um professor de mente aberta que faça com que as crianças aprendam. Muito aprendizado acontece no parque, na beira do rio. Um pai ou uma mãe pode ensinar física para uma criança com uma panela e uma colher.
Há diferença entre inteligência e talento?
Para mim, a distinção entre inteligência e talento é enganosa. Um indivíduo que é forte em uma maneira de saber pode ser chamado de talentoso ou inteligente. Oponho-me a chamar uma pessoa que é boa na música de talentosa e a uma que é boa em matemática de inteligente. Deveríamos chamar a ambas de talentosas: a matematicamente inteligente e a musicalmente inteligente.
O que é a inteligência existencial?
Por que ela não figura diretamente
como a nona inteligência?
A inteligência existencial permite fazer perguntas grandes demais ou pequenas demais. Permite compreender o que vai acontecer conosco, o que é o amor, para que estamos neste mundo. Mas ainda deve ser mais bem-estudada para ver se realmente é uma inteligência como as outras.
Em que ponto estão os estudos do cérebro?
Quais os principais desafios das neurociências?
Pessoalmente, creio que devemos aprender muitíssimo com as neurociências. Elas já produziram um sólido conjunto de evidências para comprovar minha tese. Por meio da observação do cérebro em funcionamento, essas pesquisas revelam que a mente humana abriga capacidades intelectuais independentes entre si. É a partir da combinação delas que surgem os mais diversos perfis de inteligência. Se nós não conhecermos e acompanharmos as descobertas sobre o cérebro, ficaremos anacrônicos e ultrapassados, tanto quanto se não incorporarmos as novas mídias e tecnologias. Sou um grande entusiasta em relação às neurociências, mas nem elas nem a ciência podem dizer o que são valores ou o que a escola deve fazer. A ciência deixa isso em aberto para as interpretações educacionais.
Seu livro mais recente aborda a teoria das inteligências múltiplas em diversos países do mundo. O que o senhor destacaria dessa experiência?
Fiquei surpreso com o interesse que meus estudos provocaram em educadores em todo o mundo. Inteligências múltiplas ao redor do mundo está sendo traduzido para o português. Considero o resultado deslumbrante, porque em cada país a teoria vai ao encontro de necessidades locais diferenciadas. Ela se desdobra. Por exemplo, no Japão e na Coreia, remete às mais velhas, talvez esquecidas, tradições culturais. Na América Latina, é pensada por um viés político, como democracia. Nos Estados Unidos, a teoria aponta para o que é especial na pessoa: "Meu filho vai mal na escola, mas se dá bem na relação com as pessoas ou domina tal instrumento musical", pensam os pais. Já na China, há mais de 100 livros publicados sobre a teoria. Uma jornalista explicou-me o porquê: "Nos Estados Unidos, a teoria das inteligências múltiplas volta-se para as habilidades especiais de cada criança individualmente. Aqui na China, estabelecemos como um dever nosso fazer cada criança desenvolver oito habilidades específicas diferentes".
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